Carta de um imigrado ou... a crise de meia idade.

No inicio de 2004, estive em vias de emigrar.
Esta é uma carta imaginária de uma outra vida, imaginada a partir da minha.


Reykjavik, 20 de Dezembro de 2013

Olá Pai,

Escrevo nesta noite fria, já passa das duas e meia da manhã e o sol... bem o sol vi-o por um triz hoje.

Como estás? Não, a sério como estás? Muito mudou desde que resolvi emigrar para estas paragens já lá vão quase 10 anos. A minha vida mudou mas a tua também mudou e eu nem me dei conta da distância que separa Reykjavik de Lisboa.

Mantém-me perto de ti a pista de comboios com luzinhas na estação que iluminavam os passageiros. Pista que me construíste naquela caixa gigantesca na varanda, trouxe-a comigo. Mas também os passeios de férias e fim de semana por esse país que me deste a conhecer e o prazer que ainda hoje tenho de ir "por onde o carro me levar". -"Ele é que sabe" dizias tu. Trouxe também o mar, a paixão que me mostraste e o respeito para que eu guardasse. 

Aqui o céu é mais limpo, o cosmos está mais perto. O mesmo cosmos sobre o qual tivemos milhões de conversas, sobre a sua razão mas também o seu mistério, enquanto víamos agarrados à TV o Carl Sagan a falar de um Deus que até ai não conhecia. Sabias que tens um neto que adora o universo, e o cosmos e todos os planetas e o Sol e Jupiter? Ele és também tu, não é pai?

Como está a mãe? Saudades do eterno cheiro das suas mãos frescas na minha cara no verão, o conforto com as desilusões cruéis do amor de final de adolescência, o erotismo das suas colegas de trabalho nos balneários dos seus encontros desportivos. As indicações sábias de quem ama, profundamente alguém, enquanto me diz para deixar a minha irmã em paz porque ela já é mais velha e gosta de outras coisas.

Se ela (Xana) estiver perto lê-lhe esta parte:

"Como estás, eterna companheira?
Eterno pilar da minha vida, mesmo com telefones na cabeça e portas rachadas, sempre deixaste o brecha para eu espreitar, para eu entrar, para eu me aninhar. Obrigado por tudo.
Apanhar peixes no lago do Parque de campismo de Monsanto, fazer partidas à avó Elvira, sair de casa sem que ela ouvisse e voltar para comer o seu Pudim Molotof. Dos fins de tarde na praia da Luz até as rochas de mil cores nos iluminarem todos os chakras, os jogos construídos para os 2 jogarmos, as bonecas que me emprestavas, as enciclopédias...

Obrigado por cuidares dos pais. Egoísmo o meu por sentir que eles estão bem entregues. E sei que estão. Não te esqueças de ti, de viver, mas também de sonhar. Aparece por aqui quando quiseres, mas traz roupa quente."

Pai, tens tido notícias da Manela? A minha segunda mãe. A protectora. A defensora. A guardadora das memórias dos meus avós. Do avô Artur e do seu eterno cheiro a cola de sapateiro e os dedos castanhos queimados pelo tabaco e da Avó Albina e do seu cheiro a papa de bolacha, com banana e laranja. A minha irmã mais velha, a mãe do irmão mais novo que nunca tive.
Diz-lhe que siga os seus sonhos. Com o indispensável amor do meu cunhado. Para os 2: O indispensável é viver. O pouco é mais do que bastante para ser feliz.

Pai, não te contei o suficiente sobre a minha razão de imigrar para a Islândia. Há quase 10 anos atrás, quando decidi emigrar conheci alguém que mudou a minha vida para sempre. A Elisabete.

A Beta fez desta vida imigrada a razão maior do meu viver. A memória do que eu posso ser. A mãe dos meus sonhos adultos, dos meus filhos, mas também da Sara e do Artur que já não tiverem espaço para ser.

Sei que ela vai estar com os meus filhos ai este Natal para te conhecer.

Dá-lhe o seguinte recado meu. Pois eu não tive coragem para lho dizer antes dela sair:
"Segue o teu caminho seja ele qual for. A tua força é maior do que alguma vez vou conseguir decifrar. Não olhes para os lados ou para trás. Tu és aquilo que sonhares. Eu voltarei sempre para te ver chegar."

Pai, a Rita está ai contigo agora? Diz-lhe que conto os minutos para estar novamente com ela. As férias de verão foram tão intensas, a ouvir Depeche Mode e VNV Nation, mas também a explicar-lhe as letras de Brel e de Cohen, Ah o "Famous Blue Raincoat" (esse talvez nunca lhe consiga explicar completamente... ou talvez quando lhe mostrares esta carta) mas também a lermos juntos Ary, Tordo e Godinho... Ai que saudades do teu gira-disco, pai... e do que nele tocava... sons que não me largam, e que aquecem estes invernos frios.

A Rita... Lê-lhe isto e diz-lhe até já. 
"Sem ti seria impossível imigrar, estarás sempre comigo, mesmo distante, tu és Eu e eu sou maior por causa de ti. Não deixes nunca que te digam qual o trilho a seguir. Cairás certamente, mas serás feliz na realização dos teus sonhos, mas não te esqueças de aproveitar o caminho, é nele que reside a felicidade."

Pai, como estás? Lembras-te de um dia me dizeres que a família é o que mais importa? Se a Rita já era Eu, com a Beta descobri que eu sou muitos Eus.

O Sebastião, é um deles. O teu neto... É o meu mais que tudo, o meu ser luz, a minha alma gêmea, a minha consciência, o meu professor e o meu aluno. Nele o mundo terá a sua maior força, será o que quiser, o cientista espacial mais curioso ou o melhor homem do lixo do mundo, mas será o ser mais feliz desta galáxia.

E depois temos a Alice, a minha princesa, Pai.
Ela é o meu ser terra. As minhas células, os meus pulmões, o meu respirar, a minha paixão. Espera até a veres para brincares com os seus cabelos de principezinho. Será sempre responsável por mim, por aquilo que cativou. Pai, ela somos todos nós numa só figura, ela será certamente a Matriarca da nossa e de todas as outras famílias que ela venha a querer suas.

Deixo para o fim um olá à Sara e ao Artur. Diz-lhes que um dia nos iremos encontrar. Também eles estão aqui comigo, nos dias mais frios, sinto que somos 7 aqui em casa, o numero perfeito. Como perfeito és tu pai por fazeres de mim parte desta família e por dares novas famílias a esta família. Como a amiga Paula, a conversadora Cátia ou a Avó que ainda tenho, Beatriz.

Como estás Pai? Mantém-te quentinho... logo, logo eu estarei ai com vocês todos. Esperem por mim, todos, juntos. Sempre.

Eternamente Vosso,

Nuno Silva.

Família Silva

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